domingo, 16 de dezembro de 2012

VICENTE SACCO NETTO – PRIMEIRO CAMPEÃO ESTADUAL EM 1973. – PRIMEIRA PARTE.


Em 02 de maio de 2011, escrevi sobre esse grande botonista, meu irmão/amigo/compadre/colega que aportou em Caxias no ano de 1965 e, em 1968, foi transferido para Canguçú, sendo o grande propagador do futebol de mesa no sul do estado. Em 26 de novembro de 2011, enviou-me um retrospecto de sua vida de botonista e, sem a sua autorização, reproduzi-lo-ei, pois é algo que não pode ficar restrito somente em meu arquivo.
Torneio demonstrativo da Regra Brasileira realizado em Canguçu
Marcas profundas e indeléveis. Ah, sim! Aquelas marcas, eu as conheço muito bem! Pois foi naquela mesma calçada da rua onde passei boa parte de minha infância e, também, da minha adolescência, que me pus a refletir. Há poucos dias, lá estive e não havia outra. Sempre sou acometido pela nostalgia quando volto àquele quarteirão. Paro por alguns minutos e a mente vagueia; a casa onde morei está como eu, desgastada pelo tempo... envelheceu. Mas, as marcas ou sulcos nas paredes da casa contígua – aquelas marcas estão muito nítidas.
Com efeito, há muitas razões para que permaneçam. Explico: naquelas paredes foram forjados os maiores “craques” na minha imaginação de guri. Parece incrível, nos botões a gente enxerga a própria pessoa do futebolista. Comecei aos seis anos de idade, com as tampas de vidros de remédio, de brilhantina Royal Briar, de creme Antisardina e, até mesmo, com tampinhas de garrafas. Num belo dia, minha mãe – que Deus a tenha – incumbiu-me de levar um bilhete à senhora que lhe encomendara um vestido (minha mãe, Chiquinha, era costureira, e das melhores). O bilhete continha o seguinte teor: “Da. Alzira mande, pelo Vincetinho, uns seis botões daqueles que combinamos usar no seu traje.” Da. Alzira – não sei por que razão – entregou-me um pacotinho com sete botões. Eram das minhas cores prediletas, ou seja, vermelho nas bordas e, no centro, um círculo preto. Naquela época, década de cinquenta, o G. E. Brasil (grande Xavante) contava com um ponteiro direito de nome Mortosa (tio do atual assistente do Felipão), famoso por desferir chutes fortíssimos. Não hesitei um instante. Entreguei o pacotinho à minha mãe e o sétimo botão, o Mortosa, acompanhou-me até a calçada e, de lá à parede de cimento penteado. Com muito esmero, dei-lhe uma caída apropriada para que pudesse arremessar a bolinha, botão de bragueta, por cima dos goleiros (caixa de fósforos com chumbo por dentro) adversários. O calendário da casa ou folhinha, como se dizia, ficou com um furo de tesoura no espaço do número sete. E o Mortosa não me decepcionou. Ao contrário, tornou-se o goleador do time. Aquele fato desencadeou um processo ininterrupto de muitas décadas, pois cheguei à conclusão de que as tampinhas não davam melhor retorno. Aderi aos botões de casaco ou sobretudo. Passei a frequentar a casa de um alfaiate amigo da família, sempre que tivesse oportunidade. Dizia-me o Sr. Antonio Cordias: - “Vicentinho cuida da porta para mim, que vou tomar um café e já volto”. Pode ir, Seu Antonio. E me dirigia para as caixas de botões no estoque das prateleiras. Surgiram, assim, o Tibiriçá, o Seara, o Manoelzinho, o Tábua e outros tantos grandes jogadores. Mas, no futebol de botões, como no de campo, a competitividade não tem limites e logo surgiram os ioiôs. Os discos dos ioiôs tinham o seu lado interno absolutamente liso e bastava uma lixadinha para adaptar a caída e... pronto. O Dino Sani, do São Paulo F. C., nasceu assim. Chutava muito bem de longe. Possuía uma cor de cenoura e atuava, tanto no meio de campo, como na meia, tal como de carne e osso. Logo vieram outros da mesma matéria prima: Pé de Valsa, Bauer e Alfredo, a linha de “halfs” do SPFC em 1953. A duas quadras da minha casa, localizava-se o Vidrauto Princesa, casa especializada em pára-brisas, pertencente ao Sr. Luiz Carlos Moreira dos Santos, um cidadão com quem, muito tempo depois, foram estreitados laços muito fraternos. Passei a usar o vidro-plástico (era esse o material dos pára-brisas). De posse de um compasso e da serra Tito-tico, usada na disciplina Trabalhos Manuais do colégio, comecei a produzir peças circulares e a lançar outros “atletas”. Esse trabalho era árduo, pois o material era muito duro e o lixamento na parede de cimento penteado causava bolhas e ferimentos nas mãos. Os resultados, no entanto, eram compensadores, ainda mais quando descobri que, com acetona ou éter, poder-se-ia colar no vidro plástico uma camada superior de plástico comum, existente em brinquedos quebrados das minhas primas. Justamente na era dos famosos puxadores de uma, duas e até três camadas, conseguia lançar “atletas” muito parecidos a custo muito menor; até de graça.
Ora, contando com tantas opções de matéria prima, como os ioiôs, botões de casaco, vidro plástico e plástico derretido em formas, colecionei muitos times de qualidade. Os resultados em torneios e disputas com colegas e amigos eram animadores. Desenvolvi uma razoável habilidade no preparo de botões de todo o tipo.
A pior empreitada de todas foi quando me atirei ao fabrico de botões de casca de coco. Primeiramente, tinha de retirar aquela crosta de fiapos do lado de fora. Haja tempo de paciência! Pobres dedos! Depois continuava o lixamento para dar forma circular ao pedaço de casca, na famosa parede, é claro. Casca de coco não se corta com faca ou serrinha tico-tico. Esmeril? Não havia. O material é muito resistente. Mas, o Gino, o Maurinho e o Canhoteiro surgiram assim, além de muitos outros. A casca de coco, de difícil manuseio e doloroso preparo, redunda nos melhores botões, até mesmo pelo peso do material e por deixar a base interna naturalmente côncava. Aceita perfeitamente a parafina, a cera, os adesivos e, com um acabamento dado com caco de vidro bem afiado, fica totalmente lisa. Com dois tacos de madeira de iguais dimensões e duas tampas de remédio, também iguais, abertas no topo, é possível montar as cestas. Com botões levantadores e pequenos botões de bragueta, como bola, pratiquei o basquete. Algodão, Godinho, Guguta, Amauri, Vlamir e outros formavam o meu time do Flamengo. Os modismos pressionam os meninos, tanto na infância como na adolescência. Utilizar puxadores tornou-se uma verdadeira coqueluche. Comecei a me sentir meio fora da onda com meus botões, embora os resultados, como já afirmei, fossem gratificantes. Tomei uma decisão: teria um time de puxadores vindos de P. Alegre. Mas, como obtê-los? Cadê a grana? Lamentando o caso com outro menino, o Ângelo, surgiu-me uma ideia magnífica. A senhora mãe dele e ele próprio fabricavam, artesanalmente, uns bonequinhos de naftalina para vender. Os bonequinhos vinham com fitinhas e florzinhas, todos enfeitadinhos, e as pessoas os utilizavam para evitar o aparecimento de traças e outros insetos. Argumentei com o Ângelo (onde andará?) que me forneceu uma boa quantidade dos tais bonecos para pagamento após a revenda. A operação comercial funcionou às mil maravilhas, pois pagava, digamos, CR$ 1,00 e revendia por CR$ 2,00. Coloquei os bonecos em uma caixa de sapatos e os oferecia de porta em porta. Em pouco tempo, após pagar a mercadoria, com folga financeira, encomendei um time de puxadores e mais dois reservas. A defesa era de duas camadas (preto em baixo e vermelho em cima). Os dois ponteiros e o centroavante (centerforward) eram vermelhos e os dois meias, pretos. Os atacantes e os reservas (pretos) eram todos de uma só camada. O goleador daquele time era o Joel, ponta direita do Flamengo. Passado um largo tempo daquela retumbante contratação, decidi ampliar o plantel e, novamente, o Ângelo foi o empresário que financiou tudo. Vieram mais e mais puxadores de todas as cores imagináveis. Na hora do recreio no colégio, formava-se uma pequena multidão a minha volta. Havia trocas, compras e vendas. O Ilmar (já falecido) jogava com o Corinthians e tinha um botão de nome Paulo (reserva do Índio), que era bárbaro nas finalizações. Seu chute era seco e certeiro. Para mandar no canto era com ele mesmo, pois a bolinha não picava. Nessa época (1957, talvez), houve um surto de sarampo em Pelotas e o Ilmar foi acometido pela doença, tendo de ficar acamado por alguns dias. Arrisquei-me ao contágio e fui visitá-lo. Papo pra cá e papo pra lá, trocamos alguns botões e consegui contratar-lhe o Oreco, que era muito conceituado para cavar. Entre propostas e contrapropostas, acertamos a aquisição do Paulo (azul marinho brilhoso).  Despendi CR$ 15,00, mais três botões de duas camadas e doze gibis de segunda mão. Acontece que o Ilmar queria ler na cama. Na época não houve outra contratação tão valorizada. Proporcionalmente, seria como a do Ronaldinho Gaúcho pelo Flamengo. Meus amigos mais próximos ficaram com a mesma cara da diretoria do Grêmio, pela inveja e frustração que sentiram. Saí pela rua correndo e pulando com o Paulo, na mão, mostrando para o resto da gurizada. Confesso que fiquei esnobando a turma, como quem diz: agora não tem mais para ninguém. Muito bem! Até hoje, passados mais de cinquenta anos, estou aguardando a estréia do Paulo. Por quê? O Paulo sumiu! Não sei se o perdi nas comemorações ou foi furtado/sequestrado. De 1958 a 1960, minhas atividades botonisticas diminuíram de ritmo, pois passei a trabalhar numa empresa atacadista vizinha a minha casa, lá onde está a decantada parede. Diminuíram, mas não pararam. Na tal empresa, havia um grande estoque sabem de quê? De botões! Meu emprego passou a me fornecer a matéria prima e a parede de cimento penteado. Hoje em dia não se encontra um emprego assim. Um botão surrupiado de uma caixa, outro botão de outra caixa e aqueles “olhos de peixe” para servirem de bolinha. Conclusão: voltei ao lixamento em grande escala. Eram tantos os meus times que tive até o do São Cristóvão, com Santo Cristo e Olivam na ala esquerda.
Em 1962, já no Rio Grande do Sul e no Banco do Brasil, adotei o São Paulo Futebol Clube e, unicamente, ele nos torneios da AABB. Voltei aos puxadores, mas continuei a fabricar botões por distração.


Meus amigos leitores, essa é a primeira parte da história desse grande botonista. Na semana vindoura, teremos a continuação, pois nela o Vicente narra a sua chegada em Caxias e sua apresentação pela Regra Brasileira de Futebol de Mesa.
Até a semana que vem, se Deus assim permitir.

2 comentários:

  1. Meu caro Sambaquy. Emocionante história, muito parecida com a minha iniciação nesse mundo mágico do futebol de botões. A diferença grande e bota grande nisso é que nunca fui bom aluno em trabalhos manuais, daí me frustra não ter tido a habilidade para fabricar meus próprios botões, porém, de resto, tudo se assemelha ao que é narrado. Portanto, meus sinceros parabéns pela transcrição do texto. Fatos assim não podem ficar guardados apenas na memória. Fico no aguardo da 2ª parte. Abração pernambucano, amigão.

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    1. Meu amigo Abiud,
      Cada história de botonistas é uma forma de revivermos a nossa própria. O Vicente é uma pessoa maravilhosa que entrou em minha vida de uma forma deslumbrante, pois comungavamos dos mesmos ideais. E a história dele é narrada por ele mesmo. Na próxima ele relata a sua chegada em Caxias e o nosso encontro. Deus coloca pessoas na vida da gente para que nossa caminhada seja sempre recordada. Feliz quem tem amigos botonistas, pois nunca estará só no mundo.
      Abração gaúcho.

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