Em 02 de maio de 2011, escrevi
sobre esse grande botonista, meu irmão/amigo/compadre/colega que aportou em
Caxias no ano de 1965 e, em 1968, foi transferido para Canguçú, sendo o grande
propagador do futebol de mesa no sul do estado. Em 26 de novembro de 2011,
enviou-me um retrospecto de sua vida de botonista e, sem a sua autorização,
reproduzi-lo-ei, pois é algo que não pode ficar restrito somente em meu
arquivo.
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Torneio demonstrativo da Regra Brasileira realizado em Canguçu |
Marcas profundas e indeléveis.
Ah, sim! Aquelas marcas, eu as conheço muito bem! Pois foi naquela mesma
calçada da rua onde passei boa parte de minha infância e, também, da minha
adolescência, que me pus a refletir. Há poucos dias, lá estive e não havia
outra. Sempre sou acometido pela nostalgia quando volto àquele quarteirão. Paro
por alguns minutos e a mente vagueia; a casa onde morei está como eu,
desgastada pelo tempo... envelheceu. Mas, as marcas ou sulcos nas paredes da
casa contígua – aquelas marcas estão muito nítidas.
Com efeito, há muitas razões para
que permaneçam. Explico: naquelas paredes foram forjados os maiores “craques”
na minha imaginação de guri. Parece incrível, nos botões a gente enxerga a
própria pessoa do futebolista. Comecei aos seis anos de idade, com as tampas de
vidros de remédio, de brilhantina Royal Briar, de creme Antisardina e, até
mesmo, com tampinhas de garrafas. Num belo dia, minha mãe – que Deus a tenha –
incumbiu-me de levar um bilhete à senhora que lhe encomendara um vestido (minha
mãe, Chiquinha, era costureira, e das melhores). O bilhete continha o seguinte
teor: “Da. Alzira mande, pelo Vincetinho, uns seis botões daqueles que
combinamos usar no seu traje.” Da. Alzira – não sei por que razão – entregou-me
um pacotinho com sete botões. Eram das minhas cores prediletas, ou seja,
vermelho nas bordas e, no centro, um círculo preto. Naquela época, década de
cinquenta, o G. E. Brasil (grande Xavante) contava com um ponteiro direito de
nome Mortosa (tio do atual assistente do Felipão), famoso por desferir chutes
fortíssimos. Não hesitei um instante. Entreguei o pacotinho à minha mãe e o
sétimo botão, o Mortosa, acompanhou-me até a calçada e, de lá à parede de
cimento penteado. Com muito esmero, dei-lhe uma caída apropriada para que
pudesse arremessar a bolinha, botão de bragueta, por cima dos goleiros (caixa
de fósforos com chumbo por dentro) adversários. O calendário da casa ou
folhinha, como se dizia, ficou com um furo de tesoura no espaço do número sete.
E o Mortosa não me decepcionou. Ao contrário, tornou-se o goleador do time.
Aquele fato desencadeou um processo ininterrupto de muitas décadas, pois
cheguei à conclusão de que as tampinhas não davam melhor retorno. Aderi aos
botões de casaco ou sobretudo. Passei a frequentar a casa de um alfaiate amigo
da família, sempre que tivesse oportunidade. Dizia-me o Sr. Antonio Cordias: -
“Vicentinho cuida da porta para mim, que vou tomar um café e já volto”. Pode
ir, Seu Antonio. E me dirigia para as caixas de botões no estoque das
prateleiras. Surgiram, assim, o Tibiriçá, o Seara, o Manoelzinho, o Tábua e
outros tantos grandes jogadores. Mas, no futebol de botões, como no de campo, a
competitividade não tem limites e logo surgiram os ioiôs. Os discos dos ioiôs
tinham o seu lado interno absolutamente liso e bastava uma lixadinha para
adaptar a caída e... pronto. O Dino Sani, do São Paulo F. C., nasceu assim.
Chutava muito bem de longe. Possuía uma cor de cenoura e atuava, tanto no meio
de campo, como na meia, tal como de carne e osso. Logo vieram outros da mesma
matéria prima: Pé de Valsa, Bauer e Alfredo, a linha de “halfs” do SPFC em 1953. A duas quadras da
minha casa, localizava-se o Vidrauto Princesa, casa especializada em
pára-brisas, pertencente ao Sr. Luiz Carlos Moreira dos Santos, um cidadão com
quem, muito tempo depois, foram estreitados laços muito fraternos. Passei a
usar o vidro-plástico (era esse o material dos pára-brisas). De posse de um
compasso e da serra Tito-tico, usada na disciplina Trabalhos Manuais do
colégio, comecei a produzir peças circulares e a lançar outros “atletas”. Esse
trabalho era árduo, pois o material era muito duro e o lixamento na parede de
cimento penteado causava bolhas e ferimentos nas mãos. Os resultados, no entanto,
eram compensadores, ainda mais quando descobri que, com acetona ou éter,
poder-se-ia colar no vidro plástico uma camada superior de plástico comum,
existente em brinquedos quebrados das minhas primas. Justamente na era dos
famosos puxadores de uma, duas e até três camadas, conseguia lançar “atletas”
muito parecidos a custo muito menor; até de graça.
Ora, contando com tantas opções
de matéria prima, como os ioiôs, botões de casaco, vidro plástico e plástico
derretido em formas, colecionei muitos times de qualidade. Os resultados em
torneios e disputas com colegas e amigos eram animadores. Desenvolvi uma
razoável habilidade no preparo de botões de todo o tipo.
A pior empreitada de todas foi
quando me atirei ao fabrico de botões de casca de coco. Primeiramente, tinha de
retirar aquela crosta de fiapos do lado de fora. Haja tempo de paciência!
Pobres dedos! Depois continuava o lixamento para dar forma circular ao pedaço
de casca, na famosa parede, é claro. Casca de coco não se corta com faca ou
serrinha tico-tico. Esmeril? Não havia. O material é muito resistente. Mas, o
Gino, o Maurinho e o Canhoteiro surgiram assim, além de muitos outros. A casca
de coco, de difícil manuseio e doloroso preparo, redunda nos melhores botões,
até mesmo pelo peso do material e por deixar a base interna naturalmente
côncava. Aceita perfeitamente a parafina, a cera, os adesivos e, com um
acabamento dado com caco de vidro bem afiado, fica totalmente lisa. Com dois
tacos de madeira de iguais dimensões e duas tampas de remédio, também iguais,
abertas no topo, é possível montar as cestas. Com botões levantadores e
pequenos botões de bragueta, como bola, pratiquei o basquete. Algodão, Godinho,
Guguta, Amauri, Vlamir e outros formavam o meu time do Flamengo. Os modismos
pressionam os meninos, tanto na infância como na adolescência. Utilizar
puxadores tornou-se uma verdadeira coqueluche. Comecei a me sentir meio fora da
onda com meus botões, embora os resultados, como já afirmei, fossem
gratificantes. Tomei uma decisão: teria um time de puxadores vindos de P.
Alegre. Mas, como obtê-los? Cadê a grana? Lamentando o caso com outro menino, o
Ângelo, surgiu-me uma ideia magnífica. A senhora mãe dele e ele próprio
fabricavam, artesanalmente, uns bonequinhos de naftalina para vender. Os
bonequinhos vinham com fitinhas e florzinhas, todos enfeitadinhos, e as pessoas
os utilizavam para evitar o aparecimento de traças e outros insetos. Argumentei
com o Ângelo (onde andará?) que me forneceu uma boa quantidade dos tais bonecos
para pagamento após a revenda. A operação comercial funcionou às mil
maravilhas, pois pagava, digamos, CR$ 1,00 e revendia por CR$ 2,00. Coloquei os
bonecos em uma caixa de sapatos e os oferecia de porta em porta. Em pouco tempo,
após pagar a mercadoria, com folga financeira, encomendei um time de puxadores
e mais dois reservas. A defesa era de duas camadas (preto em baixo e vermelho
em cima). Os dois ponteiros e o centroavante (centerforward) eram vermelhos e
os dois meias, pretos. Os atacantes e os reservas (pretos) eram todos de uma só
camada. O goleador daquele time era o Joel, ponta direita do Flamengo. Passado
um largo tempo daquela retumbante contratação, decidi ampliar o plantel e,
novamente, o Ângelo foi o empresário que financiou tudo. Vieram mais e mais
puxadores de todas as cores imagináveis. Na hora do recreio no colégio,
formava-se uma pequena multidão a minha volta. Havia trocas, compras e vendas.
O Ilmar (já falecido) jogava com o Corinthians e tinha um botão de nome Paulo
(reserva do Índio), que era bárbaro nas finalizações. Seu chute era seco e
certeiro. Para mandar no canto era com ele mesmo, pois a bolinha não picava.
Nessa época (1957, talvez), houve um surto de sarampo em Pelotas e o Ilmar foi
acometido pela doença, tendo de ficar acamado por alguns dias. Arrisquei-me ao
contágio e fui visitá-lo. Papo pra cá e papo pra lá, trocamos alguns botões e
consegui contratar-lhe o Oreco, que era muito conceituado para cavar. Entre
propostas e contrapropostas, acertamos a aquisição do Paulo (azul marinho
brilhoso). Despendi CR$ 15,00, mais três
botões de duas camadas e doze gibis de segunda mão. Acontece que o Ilmar queria
ler na cama. Na época não houve outra contratação tão valorizada.
Proporcionalmente, seria como a do Ronaldinho Gaúcho pelo Flamengo. Meus amigos
mais próximos ficaram com a mesma cara da diretoria do Grêmio, pela inveja e
frustração que sentiram. Saí pela rua correndo e pulando com o Paulo, na mão,
mostrando para o resto da gurizada. Confesso que fiquei esnobando a turma, como
quem diz: agora não tem mais para ninguém. Muito bem! Até hoje, passados mais
de cinquenta anos, estou aguardando a estréia do Paulo. Por quê? O Paulo sumiu!
Não sei se o perdi nas comemorações ou foi furtado/sequestrado. De 1958 a 1960,
minhas atividades botonisticas diminuíram de ritmo, pois passei a trabalhar
numa empresa atacadista vizinha a minha casa, lá onde está a decantada parede.
Diminuíram, mas não pararam. Na tal empresa, havia um grande estoque sabem de
quê? De botões! Meu emprego passou a me fornecer a matéria prima e a parede de
cimento penteado. Hoje em dia não se encontra um emprego assim. Um botão
surrupiado de uma caixa, outro botão de outra caixa e aqueles “olhos de peixe”
para servirem de bolinha. Conclusão: voltei ao lixamento em grande escala. Eram
tantos os meus times que tive até o do São Cristóvão, com Santo Cristo e Olivam
na ala esquerda.
Em 1962, já no Rio Grande do Sul
e no Banco do Brasil, adotei o São Paulo Futebol Clube e, unicamente, ele nos
torneios da AABB. Voltei aos puxadores, mas continuei a fabricar botões por
distração.
Meus amigos leitores, essa é a
primeira parte da história desse grande botonista. Na semana vindoura, teremos
a continuação, pois nela o Vicente narra a sua chegada em Caxias e sua
apresentação pela Regra Brasileira de Futebol de Mesa.
Até a semana que vem, se Deus
assim permitir.
Meu caro Sambaquy. Emocionante história, muito parecida com a minha iniciação nesse mundo mágico do futebol de botões. A diferença grande e bota grande nisso é que nunca fui bom aluno em trabalhos manuais, daí me frustra não ter tido a habilidade para fabricar meus próprios botões, porém, de resto, tudo se assemelha ao que é narrado. Portanto, meus sinceros parabéns pela transcrição do texto. Fatos assim não podem ficar guardados apenas na memória. Fico no aguardo da 2ª parte. Abração pernambucano, amigão.
ResponderExcluirMeu amigo Abiud,
ExcluirCada história de botonistas é uma forma de revivermos a nossa própria. O Vicente é uma pessoa maravilhosa que entrou em minha vida de uma forma deslumbrante, pois comungavamos dos mesmos ideais. E a história dele é narrada por ele mesmo. Na próxima ele relata a sua chegada em Caxias e o nosso encontro. Deus coloca pessoas na vida da gente para que nossa caminhada seja sempre recordada. Feliz quem tem amigos botonistas, pois nunca estará só no mundo.
Abração gaúcho.